Pular para o conteúdo

Ensino Domiciliar no âmbito do Direito Educacional pátrio: Constitucionalidade, Legalidade e Efetividade.

Artigo Ensino Domiciliar

Resumo:

O presente artigo tem como escopo elucidar os fundamentos jurídicos atinentes ao ensino domiciliar (homeschooling) à luz do Direito Educacional e de todo o ordenamento jurídico vigente em nosso país. Buscar-se-á, por meio da presente apresentação, contextualizar a origem histórica do ensino domiciliar nos Estados Unidos e como se deu o seu surgimento no Brasil. Por fim, será feita uma reflexão sobre os aspectos constitucionais, legais e sociais desta modalidade de ensino em vias de regulamentação em nosso país.

Palavras-chave:

Ensino domiciliar. Homeschooling. Ensino individual. Constitucionalidade. Legalidade. Efetividade.

I- Introdução – Origem histórica e surgimento no Brasil:

A exposição aqui em apreço tem por objetivo trazer à baila as recentes discussões acerca da prática do ensino domiciliar (homeschooling) no Brasil, bem como elucidar de forma pormenorizada a evolução da jurisprudência e dos projetos de lei sobre o tema em nosso cenário pátrio.

Ademais, buscar-se-á traçar um paralelo entre a já reconhecida constitucionalidade do ensino domiciliar e a efetividade desta prática sob o ponto de vista global do significado de “escola” em toda e qualquer sociedade civil organizada.

Não obstante as breves considerações já acima feitas, antes de adentramos de forma aprofundada ao desenvolvimento do tema em testilha, oportuno se faz nos dedicarmos à relevante assimilação da base histórica do objeto aqui em estudo.

Neste particular, vê-se que o homeschooling tem sua matriz na sociedade norte-americana dos anos 60 e 70 que, uma vez influenciada pela eclosão e evolução de movimentos sociais marcados pelo questionamento às pautas conservadoras até então postas, se viu “obrigada” a buscar métodos de “proteger” suas crianças e adolescentes de eventuais máculas aos valores éticos, morais e religiosos então vigentes.

Em tal caminhar, a autora Mary Kay Clark assim dissertou em seu livro “Homeschooling Católico: um guia para os pais”, vejamos:

“Nas décadas de 1960 e 1970, os pais católicos começaram a praticar o homeschooling porque acreditavam ser esse o único modo de protegerem seus filhos. Eles estudaram as Escrituras e os ensinamentos da Igreja para determinar se o homeschooling era permitido. Ora, não apenas as escrituras e a Igreja apoiam o homeschooling, como em diversas situações chegam a recomendá-lo.” (CLARK, 2016, p. 97)

De forma não muito diferente, entretanto com proposituras mais radicais, o autor e educador John Holt dedicou sua carreira literária e educacional à luta não apenas pelo homeschooling, mas, em especial, por práticas de maior ruptura com o sistema posto, como, por exemplo, o unschooling, onde não se veria qualquer interferência das instituições de ensino na vida educacional da criança e do adolescente, que teria seu processo ensino-aprendizagem integralmente pautado pela liberdade e naturalidade, de acordo com pré-disposições subjetivas para assimilação de conteúdos específicos de seu interesse, voltados para sua realidade particular.

Nesta linha de crítica e desconstrução do sistema educacional tradicional dos Estados Unidos, Holt publicou “How Children Fail” (1964), “How Children Learn” (1967) e “Teach Your Own” (1981), que, traduzidos para a Língua Portuguesa, equivaleriam a títulos próximos a “Como as Crianças Falham”, “Como as

Crianças Aprendem” e “Ensine Você Próprio”, sendo certo ter este último título virado uma espécie de “Bíblia” para os entusiastas do ensino domiciliar.

Já no Brasil, as primeiras práticas oficiais de homeschooling datam dos anos 90, protagonizadas, principalmente, por pessoas que já haviam sofrido algum tipo de influência desta modalidade de ensino nos EUA e na Europa.

Segundo Luciene Muniz Barbosa, autora da Tese de Doutorado apresentada à Universidade de São Paulo (USP) intitulada “Ensino em casa no Brasil: um desafio à escola? ”, o pedido formulado pela família Vilhena Coelho, de Anápolis, Goiás, teria sido o primeiro caso pós Constituição de 1988 a ser efetivamente instrumentalizado junto ao Poder Judiciário pátrio, servindo de “célula-mãe” para as discussões jurídicas e legislativas ocorridas posteriormente. Vejamos:

O caso da família Vilhena Coelho/GO ficou conhecido como o primeiro a introduzir o tema no Brasil, após a CF/88. Como os pais eram pessoas ligadas à área jurídica e por terem iniciado o processo buscando reconhecimento legal do ensino em casa, a trajetória do caso revelou um percurso rico em informações e debates jurídicos, que possibilitaram não somente a emergência do aprofundamento da interpretação dos dispositivos constitucionais e legais relacionados à educação, como se tornou referência sobre o tema. (BARBOSA, 2013, p. 51-52).

Em termos legais, consoante expressa dicção do Art. 4.o, inciso I, alíneas “a” a “c” da Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9.304/96), ficou consignado que a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino Médio são segmentos componentes da Educação Básica.

Noutro giro, conforme se pode igualmente depreender da literalidade do Art. 4.o, inciso VII, da referida Lei 9.394/96, a oferta de educação é dever do Estado, sendo certo que o direito de acesso à Educação Básica trata-se de direito público subjetivo, nos termos do Art. 5.o da própria Lei de Diretrizes e Bases.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao seu turno, reforça este dever do Estado em seu Art.205, iluminando, ainda, a necessidade de participação familiar e da sociedade na formação dos indivíduos submetidos ao Sistema Educacional público ou privado. Vejamos:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Assim sendo, temos que tanto o Estado quanto as famílias têm o dever de prover a educação básica às crianças e aos adolescentes, seja através da rede pública de ensino, seja através da rede privada, obedecidas as condições elencadas no Art. 209, incisos I e II da CRFB.

Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:
I – Cumprimento das normas gerais da educação nacional;
II – Autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.

No que se refere à prática do chamado ensino domiciliar (homeschooling), temos, em primeiro plano, que tal modalidade de ensino não pode ser confundida com o ensino individual, onde um docente, contratado pela família, em caráter complementar aos conteúdos ministrados na instituição de ensino do aluno, reforça a compreensão das disciplinas lá trabalhadas.

No homeschooling, a família assume isoladamente a incumbência de lecionar os conteúdos atinentes à escolarização regular dos educandos, ainda que conte com apoio pontual de docentes particularmente contratados, se sub-rogando no papel que seria originariamente desempenhado pela rede pública ou privada de ensino.

Assim, como dito, o tema foi importado, em especial, dos Estados Unidos e de países da Europa, onde tal modalidade se encontra enraizada com maior profundidade, observadas as peculiaridades legislativas de cada local.

No Brasil, a discussão chegou até o Supremo Tribunal Federal em 2018, a partir de um Mandado de Segurança impetrado no Rio Grande do Sul.

Desta feita, delineadas as considerações preliminares acima postas, passamos a uma análise esmiuçada acerca da constitucionalidade, da legalidade e da possível efetividade desta modalidade de ensino em nossa sociedade:

II – Desenvolvimento
II.1 – Da questionável constitucionalidade do
homeschooling reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal.

No tocante à constitucionalidade do homeschooling, tem-se que o Supremo Tribunal Federal reconheceu, em regime de Repercussão Geral do Recurso Extraordinário n.o 888.815/RS, submetido ao Plenário da Suprema Corte do Brasil, o interesse de toda a coletividade na apreciação da matéria.

Quanto ao julgamento de mérito da supradita iniciativa judicial, restou contemplada, segundo os julgadores, apesar de pontuais divergências, a compatibilidade entre o ensino domiciliar e o texto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Entretanto, mesmo que os Ministros do STF tenham reconhecido a simetria entre o homeschooling e o texto da Constituição da República, a prática de tal modalidade somente será admitida diante da existência de leis que o regulamentem e que permitam a verificação da efetiva assimilação dos conteúdos pelos estudantes. Vejamos a ementa do julgado citado:

Ementa: CONSTITUCIONAL. EDUCAÇÃO. DIREITO FUNDAMENTAL RELACIONADO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E À EFETIVIDADE DA CIDADANIA. DEVER SOLIDÁRIO DO ESTADO E DA FAMÍLIA NA PRESTAÇÃO DO ENSINO FUNDAMENTAL. NECESSIDADE DE LEI FORMAL, EDITADA PELO CONGRESSO NACIONAL, P ARA REGULAMENT AR O ENSINO DOMICILIAR.

RECURSO DESPROVIDO. 1. A educação é um direito fundamental relacionado à dignidade da pessoa humana e à própria cidadania, pois exerce dupla função: de um lado, qualifica a comunidade como um todo, tornando-a esclarecida, politizada, desenvolvida (CIDADANIA); de outro, dignifica o indivíduo, verdadeiro titular desse direito subjetivo fundamental (DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA). No caso da educação básica obrigatória (CF, art. 208, I), os titulares desse direito indisponível à educação são as crianças e adolescentes em idade escolar.

2. É dever da família, sociedade e Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, a educação. A Constituição Federal consagrou o dever de solidariedade entre a família e o Estado como núcleo principal à formação educacional das crianças, jovens e adolescentes com a dupla finalidade de defesa integral dos direitos das crianças e dos adolescentes e sua formação em cidadania, para que o Brasil possa vencer o grande desafio de uma educação melhor para as novas gerações, imprescindível para os países que se querem ver desenvolvidos.

3. A Constituição Federal não veda de forma absoluta o ensino domiciliar, mas proíbe qualquer de suas espécies que não respeite o dever de solidariedade entre a família e o Estado como núcleo principal à formação educacional das crianças, jovens e adolescentes. São inconstitucionais, portanto, as espécies de unschooling radical (desescolarização radical), unschooling moderado (desescolarização moderada) e homeschooling puro, em qualquer de suas variações.

4. O ensino domiciliar não é um direito público subjetivo do aluno ou de sua família, porém não é vedada constitucionalmente sua criação por meio de lei federal, editada pelo Congresso Nacional, na modalidade “utilitarista” ou “por conveniência circunstancial”, desde que se cumpra a obrigatoriedade, de 4 a 17 anos, e se respeite o dever solidário Família/Estado, o núcleo básico de matérias acadêmicas, a supervisão, avaliação e fiscalização pelo Poder Público; bem como as demais previsões impostas diretamente pelo texto constitucional, inclusive no tocante às finalidades e objetivos do ensino; em especial, evitar a evasão escolar e garantir a socialização do indivíduo, por meio de ampla convivência familiar e comunitária (CF, art. 227).

5. Recurso extraordinário desprovido, com a fixação da seguinte tese (TEMA 822): “Não existe direito público subjetivo do aluno ou de sua família ao ensino domiciliar, inexistente na legislação brasileira”.

Conjugando a decisão exarada pelo STF com as disposições infraconstitucionais (LDB), tem-se, portanto, que a modalidade de ensino em apreço, não é, até o presente momento, permitida no território brasileiro por regramento de alcance nacional, eis que sua metodologia educacional não tem base legal.

Logo, inexistindo qualquer respaldo judicial ou legislativo, eventual recusa e/ou resistência à matricula de criança ou adolescente em regular instituição de ensino, sob a alegação de que a família optará pelo ensino domiciliar, deverá ser imediatamente comunicada ao Conselho Tutelar e aos demais órgãos fiscalizadores, vez que o nosso ordenamento jurídico ainda é silente quanto ao tema, não podendo a família deixar, por mera liberalidade, de matricular seus filhos na rede pública ou privada de ensino.

Mais a mais, a atitude dos responsáveis pode ter reflexos jurídicos não apenas junto à Vara da Infância e do Adolescente, mas também na seara criminal, se porventura ficar configurado o crime de abandono intelectual, previsto no Art. 246 do Código Penal. Vejamos:

Abandono intelectual
Art. 246 – Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho

em idade escolar:
Pena – detenção, de quinze dias a um mês, ou multa.

Vale esclarecer que nosso vigente Código Penal data dos anos 40, tendo sido pontualmente reformado até os anos 80 e, mais recentemente, pelo chamado Pacote Anticrime, proposto pelo agora ex-Ministro da Justiça, Sr. Sérgio Moro, razão pela qual a expressão “instrução primária” mostrava-se adequada à legislação educacional então vigente, mas não mais àquela hoje prevista na LDB e demais diplomas afetos ao tema.

Ante o exposto, em um primeiro aspecto de análise, vê-se que a questão da constitucionalidade do ensino domiciliar, uma vez pacificada junto à Corte Constitucional, não comporta maiores questionamentos sob o aspecto formal, vez que cabe ao STF, mediante procedimentos previstos em lei e na própria CRFB, decidir sobre o tema.

De qualquer sorte, sob o aspecto material, temos que a decisão está longe de ser considerada incontestável ou inalterável.

Prova disso, advém da interpretação não apenas literal do Art. 205 da Carta Magna, mas também de sua análise sistemática e teleológica.

Ao dispor que a educação é um dever do Estado e das famílias, de forma alguma dever ser extraído do texto constitucional, e a partir dele, que este referido dever possa ou deva ser exercido de forma isolada por particulares.

À luz de todo o ordenamento, sobretudo do próprio caput do Art. 205 da CRFB, percebe-se, claramente, o caráter participativo, cooperativo e colaborativo da sociedade, mas jamais a prerrogativa de iniciativa puramente particular na implementação e condução do binômio “ensino-aprendizagem”.

Por consequência lógica, tem-se que o dever a que se refere o Constituinte, atinente ao Estado e às famílias na promoção da educação, é um dever conglobante, de iniciativa conjunta e complementar, mas, em hipótese alguma, excludente quanto à atuação do Estado, sobretudo, por conta de seu poder fiscalizatório.

Cumpre, nesta linha de pensamento, por analogia, analisarmos o caput Art. 227 da Constituição da República Federativa do Brasil. Vejamos:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,

além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Grifo nosso)

Pois bem, como se percebe, de forma clarividente, ao dizer que é dever da família e do Estado assegurar à criança e ao adolescente o direito à saúde, por exemplo, em hipótese alguma o Constituinte está outorgando ao particular o direito de se sub-rogar nas funções privativamente reservadas aos profissionais de saúde, como médicos e enfermeiros.

Por óbvio, no que tange à saúde, caberá aos familiares da criança e do adolescente, por exemplo, promover, incentivar e fiscalizar a adoção de práticas de higiene pessoal voltadas à prevenção de doenças ou mesmo ministrar medicamentos que não sejam de uso e comercialização restritos, entretanto, jamais, pela fria literalidade do artigo em análise, poderemos afirmar que, por ser dever também da família promover a saúde dos infantes, os particulares estarão autorizados a adotar, de modo indiscriminado, procedimentos ou prescrições médicas ao seu bel-prazer ou regidas por uma imaginária lei infraconstitucional que permitisse tal absurdo.

Deste modo, se por um lado o texto constitucional não veda expressamente a prática do homeschooling, por outro viés, igualmente, não se tem qualquer autorizativo expresso, devendo a possibilidade de recepção de tal instituto em nosso ordenamento jurídico ser avaliada, como dito acima, de maneira global, sistemática e teleológica, vez que os fins perseguidos não apenas pela Constituição da República, mas também por outros diplomas, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, consubstanciado no Princípio da Proteção Integral, não evidenciam qualquer compatibilidade do ensino domiciliar com nosso regramento jurídico e social.

Assim sendo, em que pese os louváveis e sempre bem fundamentados votos dos eminentes ministros da Suprema Corte no curso do julgamento do RE 888.815/RS, afirmar que o homeschooling é matéria pacificada em termos de constitucionalidade está longe de ser uma verdade indubitável.

II.2 – Da potencial legalidade do homeschooling no cenário jurídico pátrio

Se por um lado a questão da constitucionalidade do homeschooling, em que pese todas as críticas cabíveis, se mostra bem encaminhada junto ao STF, já quanto à legalidade do referido instituto o cenário não é o mesmo e por uma razão bem simples: a ausência de qualquer legislação infraconstitucional de alcance nacional sobre o tema.

Conforme já outrora insculpido, o Supremo Tribunal Federal, ao considerar que a família e o Estado formam um binômio incumbido de prover a devida qualificação acadêmica e pedagógica para as crianças e adolescentes, razão pela qual restou reconhecida a constitucionalidade do homeschooling, o fez com a ressalva de que a opção pelo ensino domiciliar se dê de forma vinculada às diretrizes impostas pela legislação pátria.

Ocorre que, até o presente momento, o que se depreende do vigente cenário legislativo é tão somente a existência de múltiplos projetos de lei sobre o tema, devidamente apensados para apreciação conjunta pelo Poder Legislativo.

Neste particular, destacam-se os Projetos de Lei n.o 3.179/12, 2.401/19 e 3.262/2019, sendo certo que em junho do corrente ano de 2021, a pauta em testilha ganhou maior força e celeridade junto ao Congresso Nacional após a aprovação do PL 3.262/19 pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).

Pela chamada “Bancada Governista”, Deputadas Federais como Luisa Canziani (sem partido-PR) e Bia Kicis (PSL-DF) lideram as articulações no Parlamento em favor da aprovação da pauta.

Já na liderança da oposição ao projeto, destacam-se os nomes de Israel Batista (PV-DF) e de Marcelo Freixo (PSB-RJ).

Por este viés, ainda que carente de regulamentação por lei própria, há de ser dito que a implementação do homeschooling em nosso território vem amadurecendo a passos largos, sobretudo diante da sua politização cada vez mais crescente, consoante será melhor indicado no tópico seguinte.

II. 3 – Da politização e da efetividade do homeschooling. Aspectos sociológicos e sociais do ensino domiciliar.

Com o avanço das exposições até agora levadas a efeito, já se mostra possível fazermos, ao menos, duas assertivas com relativo grau de segurança jurídica.

A primeira, nos termos já postos, diz respeito ao efetivo reconhecimento da constitucionalidade do homeschooling pelo Supremo Tribunal Federal, ainda que, vale frisar, tal posicionamento seja altamente questionável do ponto de vista jurídico pelas razões já postas.

A segunda, por sua vez, versa sobre a potencial legalidade desta modalidade de ensino, vez que a construção do texto legal que a regulamentará se mostra bem avançada e amadurecida.

Neste viés, contudo, devemos ter em mente que a crescente celeridade de tramitação da regulamentação do ensino domiciliar no curso do vigente mandato do atual Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, não é uma coincidência.

Como visto, a pauta em questão vem ganhando força galopante a partir do ano de 2018, ano do julgamento do Recurso Extraordinário n.o 888.815/RS pelo Supremo Tribunal Federal e da eleição de Jair Bolsonaro para o Poder Executivo Federal, ainda que antes do referido ano já tivesse havido múltiplos movimentos em prol do ensino domiciliar.

Neste diapasão, oportuno se faz relembrarmos que, não apenas no curso de sua trajetória política, mas também, em especial, no curso de sua última campanha eleitoral, o atual presidente protagonizou inúmeros ataques aos sistemas de ensino, públicos ou privados, e às suas metodologias aplicadas, chegando-se, inclusive, ao ponto, de ser afirmada uma suposta “sexualização” e partidarização da educação diante da ressuscitação do chamado “fantasma comunista”.

Por corolário lógico, a ala governista, dita “Ala Bolsonarista”, em comunhão de designíos com os entusiastas da chamada “Escola Sem Partido”, vem

empreendendo todos os seus esforços para a regulamentação do homeschooling, sob a preocupante alegação de que, assim, nossas crianças e adolescentes estariam melhores protegidas dos “ideais de esquerda”.

Tal dinâmica eleva a discussão do ensino domiciliar a um novo patamar, qual seja, estaria o homeschooling a serviço da possibilidade de escolha democrática de uma modalidade de ensino ou estaria tal instituto a serviço do autoritarismo e da pura politização da educação?

Seja lá qual for a resposta, fato é que a implementação do homeschooling no Brasil parece, hoje, ser uma questão de tempo, razão pela qual, além das legítimas críticas que possam a ele ser feitas, é importante que nos preocupemos, igualmente, com a melhor forma de instrumentalizá-lo em nossa realidade local.

Neste ponto, as recentes proposições no Congresso Nacional aparentam ter caminhado bem, ou de forma menos gravosa, ao passo que propõem que, uma vez implementado o homeschooling, não haja o total esvaziamento da figura do professor e da escola na vida dos jovens brasileiros.

Destacam-se, neste ponto, as seguintes propostas. Vejamos:

• Que as famílias matriculem as crianças em escola pública ou privada, ainda que as crianças não a frequentem. Os pais serão responsáveis pela frequência e supervisão das atividades;

• Que os pais ou responsáveis apresentem antecedentes criminais;

• Que sejam realizadas atividades pedagógicas que promovam a formação integral do estudante;

• Que os pais ou responsáveis registrem periodicamente as atividades pedagógicas realizadas e enviem para escola em que o estudante estiver matriculado;

• Que sejam realizadas avaliações de aprendizagem e que os estudantes participem das avaliações nacionais, estaduais e municipais.

Como visto, há uma nítida, ainda que tímida, preocupação com o total e imediato esvaziamento do modelo clássico de ensino, fator este que, se não elimina, ao menos suaviza os equívocos do atual projeto.

Concluídas as exposições de natureza estritamente jurídica, oportuno se faz que tragamos à baila os impactos sociais, e até mesmo sociológicos, do homeschooling.

Em tal raciocínio, há de considerarmos que as instituições de ensino não podem ser tidas como meros “centros formadores de mão de obra para o mercado de trabalho”.

II.4 – Dos possíveis impactos sociais e sociológicos decorrentes da implantação do homeschooling no Brasil

Aquele que pensa que a efetiva implementação do homeschooling viabilizará a superação de “paternalismos” em termos de política educacional, se torna vítima argumentativa de sua própria tese, tendo em vista que a ideia de que pais e mães podem ser donos da educação de seus filhos, e não apenas legítimos responsáveis por ela em comunhão de esforços com o Estado, é justamente a ideia que ressuscita a concepção já superada de “Pátrio Poder”.

Pois bem, uma vez substituída, nos termos da legislação constitucional e infraconstitucional, a ideia de “Pátrio Poder” por aquela pautada no “Poder Familiar”, tem-se que o Constituinte e o Legislador sedimentaram o caráter de ‘responsabilidade’ dos pais em face de seus filhos e não ‘propriedade’ em desfavor dos mesmos.

Nesta esteira de raciocínio, a possibilidade de adoção de uma modalidade de ensino estritamente domiciliar se mostra preocupante não apenas por conta da fragilização da figura da escola e do professor enquanto pilares fundamentais da rede de proteção à criança e ao adolescente, mas, igualmente, por conta da possível consolidação da errônea conclusão de que o conceito de ‘escola’ está pautado tão somente

na concepção de que esta é o local físico onde crianças e adolescentes são preparados para o mercado de trabalho.

A admissão do homeschooling em nosso ordenamento jurídico implicará não apenas no enfraquecimento de uma rede de proteção que identifica, hoje, segundo dados do “Relatório Disque 100 (2019) ”, 72% dos casos de violência contra crianças e adolescentes, mas também no enfraquecimento da escola enquanto polo produtor de cidadania e sociabilidade, mesmo fora do perímetro de seu espaço físico.

Neste viés, quando uma criança ou adolescente, no itinerário de sua casa para o local de aula, se depara com os graves problemas do sistema público de transporte, pode-se dizer que “isto é escola”.

Por oportuno, quando um aluno de classe média alta interage com um colega bolsista, morador de uma comunidade carente e, a partir dos relatos reais deste colega, toma maior conhecimento sobre dados atinentes à pobreza, falta de saneamento básico e violência policial nas ‘favelas’, pode-se dizer que “isto também é escola”.

A crença de que a mera interação de um aluno em homeschooling com seus colegas do condomínio, do curso de Inglês ou da aula de futebol se mostrará suficiente frente as experiências proporcionadas por uma convivência plural e positivamente heterogênea, traduz a utópica ideia que o mundo é feito de iguais, ou mesmo a reprovável ideia de que, mesmo uma democracia, os diferentes não devem conviver.

III – Conclusão

Esgotas as exposições acima feitas, é possível chegarmos à conclusão de que tanto na sociedade dos “conservadores norte-americanos” dos anos 60 e 70, quanto na sociedade brasileira dos “cidadãos de bem”, trajados com suas camisas verde e amarelas, o homeschooling se mostrou e se mostra a serviço do paternalismo e do conservadorismo cego e intolerante, viabilizando a ideia de que pais e mães podem ser donos da educação de seus filhos, enquanto, em verdade, cabe a eles, em comunhão de

desígnios o Estado e com os profissionais de educação, o aperfeiçoamento qualitativo e democrático do processo ensino-aprendizagem.

De qualquer modo, estando a favor ou não do ensino domiciliar, entendendo que, uma vez reconhecida a sua questionável constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, e avançado o projeto de tramitação e de potencial votação da pauta em apreço no Congresso Nacional, caberá ao Estado, e à sociedade civil como um todo, uma vez aprovado e sancionado o homeschooling, fazer com que tal modalidade de ensino seja levada a efeito da maneira menos problemática possível.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA Luciane Muniz R. Ensino em casa no Brasil: um desafio à escola? 2013.348 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. Disponível em: www.fcc.org.br/fcc/images/pesquisa/premio_capes/pdf/LUCIANE_MUNIZ_RIBEIRO _BARBOSA_rev. pdf; Acesso em: 12/07/21 às 18h10min.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil – 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil03/constituicao/constituicao.htm; Acesso em: 12/07/21 às 18h10min.

BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Fixa diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: planalto.gov.br/ccivil03/leis/l9394.htm. Acesso em: 12/07/21 às 18h10min.

BRASIL. Projeto de lei no 3.179, de 08 de fevereiro de 2012. Acrescenta parágrafo ao art. 23 da Lei no 9.394, de 1996, de diretrizes e bases da educação nacional, para dispor sobre a possibilidade de oferta domiciliar da educação básica. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=8DDB857 E73A548D57F6A2E6C383ACC8E.proposicoesWebExterno2?codteor=963755&filena me=PL+3179/2012; Acesso em: 12/07/21 às 18:10 horas.

BRASIL. Projeto de lei no 2.401, de 17 de abril de 2019. Dispõe sobre o exercício do direito à educação domiciliar, altera a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente, e a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1734553&fil ename=PL+2401/ 2019; Acesso em: 12/07/2021 às 18horas.

CLARK, Mary Kay. Homeschooling católico: um guia para os pais. Tradução de Lorena Cutlak, edição de Renan Santos, – Porto Alegre, RS: Concreta, 2016.

SINDICATO DOS ESPECIALISTAS DE EDUCAÇÃO DO ENSINO PÚBLICO MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Projeto de homeschooling avança e pode ser votado na Câmara dos Deputados. São Paulo: Disponível em: https://www.sinesp.org.br/noticias/aconteceu-no-sinesp/12240-projeto-de- homeschooling-avanca-e-pode-ser-votado-na-camara-dos-deputados; Acesso em: 12/07/2021 às 18h:20 min.

Sobre o autor:

Daniell Hagge Roriz da Costa é advogado, Bacharel em Direito pela Universidade Cândido Mendes –RJ, especialista em Direito Educacional pela Universidade Cândido Mendes – RJ, sócio e fundador do escritório Roriz, Fusaro, Arouca, Lourenço e Penaterim Advogados Associados (RFALP Advogados Associados), pós-graduado em Direito Penal, Processo Penal e Criminologia pela Universidade Cândido Mendes –RJ. Possui extensões universitárias em Processo Civil, Alienação Parental e Lei Geral de Proteção de Dados, todas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO), e é membro efetivo da Associação Brasileira de Direito Educacional (ABRADE).